Ir a escola sem pentear os cabelos para mim não era nada de mais, só um direito de me sentir confortável, ponto; mas vizinhos queixavam-se aos meus pais, "vocês devem ficar de olho na sua filha, ela deve ter algum problema", chegando em casa, horas de sermão. Enquanto eles falavam sobre a vida e todas as coisas que implicam dela eu viajava em meus pensamentos; me via nadando em algum lugar que ainda não conhecia mas sabia que existia, me imaginava uma baterista da banda de Raul Seixas, apresentando peças de teatro, e lá pelo fim da conversa pensava: _Por que estão dizendo tudo isso pra mim? Eu já sei. Como um estopim queimando meu pavio decidi ir a essas repostas, entender o que tanto eles falavam que "não pode isso, não pode aquilo, é feio, é perigoso, vai se machucar, o mundo não é cor-de-rosa, as pessoas não terão paciência" e muitas outras coisas que botaria medo até no Coringa. Andei, andei muito, e nada mudou em minha cabeça, a não ser pessoas que levarei para sempre em meu coração e outras que se quer lembro a feição, destas nem faço questão. Passando fome, frio e sede vi a verdadeira cor do mundo, ele sempre foi azul e sempre será, as vezes se enfeita de coloridos, mas isso depende do humor do criador. Um dia numa tarde de abril, chorando muito, as chuvas ao se misturarem as minha lagrimas tiravam todo o salgado dela, mas uma lição eu aprendi, pior que seja a dor e o peso de suas lagrimas, sempre haverá algo para lhe acalmar. Nessas andanças sem rumo nem paradeiro fui esquecendo das tão procuradas respostas e aumentei as perguntas. Parei exausta, ferida na pele e na alma, percebi que me fechava, eu não sabia de quase nada!
Com os olhos voltados ao chão, a vergonha e a fome me tomava, sorrateiramente senti de leve uma mão sobre meu ombro, virando a cabeça devagar pude contemplar aquele sublime afago, num instante alcancei os olhos daquele ser e o fitei, com admiração e resignação cobri aquelas mãos com a minha. Sorte feliz eu vivia, fui encontrada por um senhorzinho marcado de rugas profundas, moldurado num físico franzino, vestido de um macacão cinza chumbo faltando alguns botões, quando num solavanco ele me puxa para levantar e assim seguir caminho para conversarmos. Falamos sobre tudo; morte-vida, feio-bonito, e o mais importante, a relatividade e reciprocidade, uma palavra eu conhecia, não sabia muito bem o significado, mas essa tal de reciprocidade me pegou, ele calmamente me explica as duas e diz a importância de jamais esquecê-las. O senhorzinho explica: "A relatividade é a forma de explicar que ambos num determinado assunto tem razão, dependerá sempre de como aquilo é ou não importante para cada um, ou, o que pode ser normal hoje, amanhã será improvável e vice-versa; já a reciprocidade estabelece a conduta que um deve ter com o outro da forma que o outro lhe dá, por exemplo; um me diz bom dia, logo retribuo a gentileza e respondo a saudação, o que quer dizer que todos tem aquilo exatamente como oferece, se for gentil, receberá gentileza, sendo mal, assim também o terá, em outras palavras, nunca exija aquilo que não deu, e se deu e este não lhe ser reciproco, o respeite, hora de praticar a relatividade, quiça esteja passando por algo que o faz ser assim naquele momento." Paramos em uma altura e ele me ordena: "Vá, volte a sua vida e seja o que exatamente é, mas nunca deixe de fazer o que deve ser feito, passe adiante as experiências que adquirir com a vivencia, isso é ser feliz, pois as ovelhas são rebanhos especiais de Deus, e Ele ama a todas, não importa a cor."
Muito tempo se passou, estou aqui mais velha, ainda assim como as mesmas aflições e sonhos de menina, a diferença é que agora sei quem sou, o que deve ser e se estiver errada posso me tornar outra ainda muito melhor, por isso sempre vi as cores e seu sabores em tudo, ainda que muitos só viam cinza. Gosto de ser ovelha negra e fazer parte de uma família de muitas cores, eu tenho uma em especial que é colorida de arco-iris, isso só deixa tudo mais belo e fascinante. A este senhorzinho, onde quer que se encontre dedico toda minha fé e amor, sua cor me coloriu de um brilho e ilumina até hoje, assim, faço questão de levar a todos este calor. Saudações senhor!
Desfragmento Papiro séc. XXI n. 19
(Beatriz CC Galvão)
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